sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Crivelli, ou crónica de uma pequena corrupção entre amigos...

Crivelli é um autor italiano do século XV, que não se enquadra nem na pintura gótica nem na pintura renascentista, sendo um pintor de transição. Os pintores de transição reflectem o mundo em mudança e isso agrada-me. O Museu do Vaticano tem na colecção quadros de Crivelli e a National Gallery de Londres também. Portugal tinha um Crivelli, que em 1968 foi restaurado com o apoio do Estado, dado que o quadro pertencia a uma família. Isto é muito comum. Imaginem que têm um quadro em casa, ou uma outra qualquer peça de muito valor. O Estado não lhes pode retirar a peça, mas pode defender que a peça tem um tal valor simbólico-histórico -artístico, que não pode sair de Portugal. Em 2007, o tipo da TVI, Miguel Pais do Amaral, alguém que não se sabe bem o que faz e tal, compra o quadro e  vende-o em 2001 para França, apesar de ter um parecer negativo da Direcção Geral do Património Cultural sobre a sua venda, proibindo o quadro de sair do território nacional. A decisão final sobre a venda ou não do quadro deveria ser do Ministro da Cultura, que Portugal não tem. Então, a decisão final da venda do quadro foi tomada pelo Secretário de Estado da Cultura, um escritor de nome Francisco José Viegas, que deixa o quadro sair do país apesar dos pareceres contrários da Direcção Geral do Património Cultural e de todos os técnicos envolvidos no caso. Ninguém percebe como isto aconteceu. O antigo secretário de Estado, o tal Viegas, responde desta foram elegante: "Escuso-me de comentar a hipótese de ter €2,9 milhões disponíveis (anos antes, o Estado português não tinha disponibilizado €50,000 para ficar com a arca de Fernando Pessoa que, aliás, é exposta sempre que o proprietário é solicitado). Confesso, também, que gostaria de pedir o NIB de algumas das pessoas que — com a habitual arrogância — ontem tinham redescoberto Crivelli, a fim de custear as obras de restauro dos carrilhões de Mafra (€2M), da torre da Sé de Lisboa, do Convento de Cristo, de S. Bento de Castris, do Forte da Graça, etc. Dinheiro há sempre, suponho."

Bem dinheiro há sempre para BPNS, há sempre para pagar dívidas bancárias, mas não há para comprar o quadro de vez. Mas a questão nem é essa: o Estado não tinha qualquer necessidade de comprar o quadro, apenas teria de NÃO o deixar sair do país. Esta é a questão. Muitos coleccionadores particulares emprestam arte , quadros ou outros objectos para exposições permanentes ou temporárias. Não há qualquer problema. O problema é que as obras de arte não estão todas inventariadas como deveriam estar, porque não há dinheiro para contratar equipas que façam um levantamento das obras de arte que existam nestes pais. E sobretudo, neste caso, não deixar que Miguel Pais do Amaral vendesse a obra para o estrangeiro. Das duas uma: ou ficava com o quadro na sua colecção ou tentava vender  o quadro em Portugal, com prejuízo para o próprio e não para o país. Infelizmente  não temos  Ministro da Cultura  nem secretários da Cultura, mas sim gente  com ideologias perigosas. Este quadro não deveria ter sido vendido para o estrangeiro e nem era preciso que o Estado o comprasse. Bastava que a lei se tivesse cumprido, porque era uma obra protegida pelo Estado Português. Viegas afirma que a lei da protecção não se aplicava a Crivelli porque tinha sido levantada. Está bem. E por quem? Bem, aí   a censura voltou porque o processo sobre esta venda não pode ser consultado.  É estranha, opaca e sobretudo triste toda esta história. Perdeu-se mais uma vez património e ninguém sabe nem porquê, nem como, nem quando.Apenas mais um pequeno negócio entre amigos, mais um pequeno crime para o país. Business as usual…

A corrupção é um crime sem rosto.
Joel Birman

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