quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O lápis azul voltou.

Parece mentira mas não é. A revista "Análise Social" foi retirada de circulação porque um dos artigos, sobre graffiti, continha imagens impróprias para um grande grupo comercial, que começa por P e D. Esse grupo comercial é um dos financiadores do ICS e, para não criar atritos com o sponsor, o ICS retirou todo o número de circulação. Atentado à liberdade, censura, ataque à liberdade de imprensa, tudo o que lhe quiserem chamar. A censura de volta 40 anos depois do 25 de abril. Porque as ditaduras não são só políticas, também são económicas.Transcrevo na íntegra o texto de tomada de posição do Ricardo Campos (autor do ensaio visual "A Luta Voltou ao Muro")sobre a decisão do diretor do ICS em retirar de circulação o último nº de "Análise Social".

"Aqueles que me conhecem sabem que não tenho por hábito fazer comentários e colocar posts no facebook. Todavia fui arrastado para uma situação completamente inesperada e que assumiu proporções que merecem um comentário da minha parte.
Como é do conhecimento público, um ensaio visual que submeti à revista Análise Social foi alvo de censura por parte do director do Instituto de Ciências Sociais, tendo sido retirado de circulação. Aproveito para agradecer a solidariedade e as palavras de apreço de muitos colegas que consideram este tipo de atitudes inaceitável numa academia que devia preservar a liberdade de pensamento, a reflexão intelectual e o debate sem preconceitos. Aproveito, ainda, para agradecer a posição assumida pelo conselho editorial da revista, que demonstrou honestidade intelectual e rigor na forma como geriu toda a situação.
Como é natural recebi esta notícia com imensa surpresa e com algum choque. Surpresa, desde logo, porque não houve qualquer resistência anterior à publicação do meu ensaio visual. Foi por isso, com naturalidade, que recebi a informação de que a minha contribuição iria ser publicada no mais recente número da revista.
Surpresa, também, pelas razões invocadas que não focam qualquer questão de natureza científica ou ética que debilite, quer o argumento apresentado, quer a validade do mesmo. Tenho pesquisado ao longo da última década as questões da arte urbana, do graffiti e dos murais. Publiquei em diversas revistas nacionais e internacionais sem que, até aqui, alguma vez o conteúdo das imagens que apresentei tivesse sido alvo de qualquer juízo estético ou de valor. O que sempre esteve em causa foi o potencial ou pertinência analítica das ilustrações fotográficas. Nunca, por isso, me recusaram a publicação ou fizeram qualquer tipo de censura sobre o conteúdo imagético das fotografias.
As imagens que apresentei existem na rua e estão disponíveis ao olhar de qualquer transeunte. Considero que estas constituem uma expressão cultural e política singular, enquadrada num determinado contexto histórico e foram consideradas enquanto tal. São, obviamente, manifestações de indignação, de revolta e angústia, que alguns entendem ser de gosto duvidoso. A mim interessam-me as considerações de ordem científica que decorrem de uma análise da rua enquanto espaço de manifestação política, independentemente do choque que estas formas expressivas possam eventualmente causar. Aliás, enquanto cientista social, não me parece que existam objectos (ou imagens) de pesquisa menos dignos que outros. Mal estaríamos se começássemos a autocensurar-nos, tendo em conta critérios de bom gosto na aferição da forma como as pessoas se expressam e comunicam. Se censurássemos todo e qualquer objecto de estudo que pudesse ferir as susceptibilidades do público ou dos poderes instituídos (políticos, económicos, religiosos...) muitos fenómenos sociais ficariam fora dos nossos olhares.
Lamento, que o ICS tenha optado por uma situação que, a meu ver, em nada beneficia a imagem da revista e que considero pouco respeitosa para com um colega de academia que cumpriu todas as exigências éticas e científicas que devem reger a nossa conduta.
Que este episódio sirva, também, para repensarmos não só o nosso papel enquanto cientistas sociais, mas também para questionarmos o estado actual das instituições académicas e dos critérios que regem a “gestão” dos seus conteúdos".

Ricardo Campos

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